Conveniência ou morte! *

A cultura do alarmismo não é só lucrativa, mas também mascara verdades incômodas e fomenta mentiras convenientes. Duas delas dizem respeito a falta de alimentos e água no mundo, teorias estas corroboradas pela falácia de que há pessoas demais para recursos de menos. Tais “verdades” são, no mínimo e propositalmente, mal elaboradas e engolidas sem a devida reflexão – ainda mais em tempos de “zap-zap”.

O fato é que o ser humano transformou em “produto” todas as coisas que lhe são essenciais a vida. Os alimentos, a água, os remédios e até mesmo as tão festejadas descobertas da medicina são, antes de tudo, precificadas e disponibilizadas a quem pode pagar por elas. Dito isto, reconheçamos que não são estas coisas que estão em falta no mundo, mas sim o meio de acesso: dinheiro. Duvida? O mundo produz, em média, 4 bilhões de toneladas de alimentos por ano e, segundo estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, isto é mais do que suficiente para alimentar a população do planeta. Ainda assim, uma em cada nove pessoas vive a realidade da fome e a cada quatro segundos alguém morre por desnutrição.

Direito de imagem: Arabian Gazette

Com a água a situação não é diferente, mas ganha novos contornos e combinações de fatores. Em relação a esta commodity (como já é chamada…) escolhemos continuar, em pleno século XXI, a ignorar as tecnologias disponíveis e nos mantermos (literalmente) defecando onde poderíamos nos servir. E a razão dessa imbecilidade não gira em torno de outra coisa a não ser custos. Sim, pois muitos gestores preferem lançar lixo e esgoto in natura nas águas do entorno de suas cidades, ao invés de investirem em tratamento e reaproveitamento; idem para industriais e empresários do agronegócio, que em nome de minimizarem custos acabam por desprezar o bem comum, envenenando lençóis freáticos e mananciais. Assim sendo, podemos concluir que a única coisa escassa em relação a água é a conscientização de quem faz uso dela.

Esgoto in natura sendo despejado em rio (imagem: reprodução/Midia News)

Uma vez confrontada, a mentira da escassez se revela como a máscara que é, encobrindo a verdadeira questão. Não estamos dispostos a abrirmos mão do nosso modo de vida e do sistema monetizante que pauta a nossa relação com tudo em redor. As mortes por inanição, sede ou falta de acesso a um medicamento devido a seu preço não são suficientes para nos sensibilizar, nunca foram. Sabemos sim o que devemos fazer, como colocar as coisas nos seus devidos lugares… depois de tantos séculos de conhecimento acumulado, este período “modernoso” que vivemos se configura, sem dúvidas, no gargalo de nossas consciências: não há desculpas, todos os meios estão à disposição.

O respeito a vida deveria ser a força motriz de todas as nossas tomadas de decisões em relação ao “outro”. Não há nenhum problema em se lucrar com a venda de alimentos, água ou medicamentos, desde que esse comércio seja feito com o “remanescente”, após o pleno atendimento gratuito das demandas principais. Quando a obtenção do lucro se torna um impeditivo a manutenção da vida, tal prática pode até ser legalizada, mas ainda assim será imoral e inaceitável, não importa sob qual égide ideológica, política ou econômica esteja sendo levada a cabo.

Esta lógica tão simples poderia muito bem ser explicada por um agricultor familiar, que retira da terra primeiramente o sustento dos seus e leva para a feira apenas o excedente. Neste sistema, o lucro não é criminalizado, mas jamais suplanta a importância da manutenção da vida. Um modelo “macro” deste exemplo poderia ser implantado no mundo, com certeza, bastando para tanto encararmos o amparo aos nossos iguais como um primordial dever e não uma oportunidade de lucro.

* O título deste artigo foi livremente inspirado pela coletânea musical “Give me convenience or give me death“, da banda punk Dead Kennedys.

Imagem principal: Pinterest

Sair da versão mobile