O projeto de lei que propõe modificar a Lei de Execuções Penais (LEP) e o nosso Código de Processo Penal (CPP) é uma faca de dois gumes: se por um lado pode reduzir a superlotação no sistema carcerário e facilitar a ressocialização de presos, de outro, pode reduzir penas de criminosos “de colarinho branco”, em última análise, os políticos e empresários envolvidos em corrupção. Essa é, em linhas gerais, a avaliação de especialistas ouvidos pela Ponte. O texto do PL 9054/2017, de autoria do senador Renan Calheiros (MDB), foi aprovado no Senado em outubro de 2017 e tramita na Câmara dos Deputados.
Além da alteração na LEP, o projeto propõe mudanças na Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), Lei Antidrogas (Lei 11.343/06) e Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).
A proposta é antiga, data do ano de 2013, e trata de alterações na forma de cumprir a pena e foi elaborada por um grupo de juristas interessado em reduzir a superlotação no sistema prisional, estimulando a progressão de regime, por exemplo, tratando com celeridade casos de presos provisórios, alterando regras com relação a atividade laboral dentro da unidade prisional, entre outras medidas. Ao longo dos anos sofreu modificações até ser renomeado, após aprovação dos senadores, para PL 9054/2017. Em 2016 – base de dados mais recente divulgada pelo Infopen -, havia 726,7 mil presos para 368 mil vagas em todo o país. Mas é a massa carcerária que sofre na pele o problema da superlotação, não os condenados por corrupção.
Uma reportagem da Ponte publicada em dezembro do ano passado, a partir de dados do Infopen, expõe esse abismo: “se o sistema tivesse um rosto, uma identidade, ele pouco teria mudado em dois anos. Continua sendo homem (94%), negro (64%), jovem (41% têm entre 18 e 29 anos) e com baixa escolaridade, já que 75% abandonaram os estudos antes de chegar ao ensino médio”.
O tema foi até mesmo usado durante campanha eleitoral pelo governador eleito em Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), para atacar o oponente, Antonio Anastasia (PSDB). “Eu gostaria de lembrar que, durante a sua jornada no Senado, o senador Anastasia votou pela PL 513/2013, da qual ele foi relator, e essa PL acabou dando benefícios a bandidos, inclusive reduzindo a pena”, disse em debate na TV Record. A agência de checagem Truco, da Agência Pública, desmentiu a informação, já que Anastasia de fato votou a favor do PL, no entanto, ele ainda é um projeto, ou seja, não virou lei.
O futuro Ministro da Justiça e Segurança Pública, juiz Sérgio Moro, que ganhou visibilidade por causa da Operação Lava-Jato, na última segunda-feira (26/11), se posicionou contrário ao projeto de lei e manifestou desejo de que a matéria seja analisada apenas no ano que vem para que o governo eleito possa também fazer a sua manifestação. “Eu não penso que resolve-se o problema da criminalidade simplesmente soltando os criminosos, aí a sociedade acaba ficando refém dessa atividade criminal”, disse, segundo reportagem publicada na EBC.
De acordo com o advogado João Paulo Sangion, professor de criminologia da Universidade Mackenzie, o projeto está sendo usado de forma oportunista pelos políticos. “Um dos pontos mais importantes é que ela abranda a punição de vários crimes e aumentaria a possibilidade, de acordo com o Ministério Público, de a pessoa não ser denunciada. O projeto também viabilizaria a suspensão de processo. Hoje, a pena mínima para ter direito a suspensão é de um ano e isso iria pra três”, explica o professor dizendo que isso abrange grande parte de crimes conhecidos como “de colarinho branco” como peculato, corrupção e lavagem de dinheiro.
De forma resumida, Sangion diz que crimes sem violência ou grave ameaça seriam tratados de forma mais branda. Casos assim são comuns em crimes cometidos por empresários, por exemplo. Por outro lado, “criminosos comuns”, que cometessem crimes que não ferissem a integridade física de ninguém, também seriam beneficiados. Um exemplo usado pelo advogado são os furtos.
A advogada Clarissa Nunes, integrante do ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), afirma que, apesar das críticas em relação aos crimes de “colarinho branco”, o grande objetivo do projeto de lei é reduzir o encarceramento em massa e propor outras formas de punição, que não seja apenas prender a pessoa que cometeu um crime.
Ela lembra que uma pena alternativa interessante para quem participou de esquemas de corrupção contra a população pode ser, por exemplo, devolver o dinheiro desviado. Isso, segundo ela, beneficiaria tanto a sociedade quanto o preso, que estaria sendo educado. “Então, as pessoas que foram presas por furtos teriam que devolver o valor do objeto, por exemplo. Isso tudo são formas de o direito penal reeducar essa pessoa sem prender e colocar em uma fábrica de criminosos. A sociedade como um todo seria beneficiada. Essas pessoas seriam responsabilizadas [pelos crimes], só que de outras formas”, explica.
Para Sangion, esse benefício tem como objetivo melhorar a situação de vida de políticos que foram pegos em crimes de corrupção. A pena de regime aberto, por exemplo, seria modificada para regime domiciliar. Além disso, ele lembra que, no direito, se uma mudança de lei é mais branda, ela abrange as pessoas que já foram condenadas e presas. Segundo ele, essa seria uma forma de os criminosos de “colarinho branco” beneficiarem também aqueles que já foram responsabilizados pelos seus crimes.
“Quando você pensa em criminoso de colarinho branco, não tem que falar de ressocialização. O abrandamento da punição é sempre bem-vindo para alguns casos. Não dá pra ressocializar alguém privando a liberdade, nunca é bom o recrudescimento penal. Claro que essa lei vai favorecer para outros delitos, que tem um outro público do direito penal, mas também vai atingir crimes investigados e punidos pela Lava-Jato, por exemplo”, explica Sangion.
Clarissa, no entanto, insiste que o projeto traz uma tentativa de acabar com a superlotação dos presídios. “O argumento em relação a questão da corrupção está deixando de lado um panorama muito maior. Se o governo não consegue manter os presídios de forma digna, o preso não pode ter a responsabilidade de ser mantido em uma situação dessas”, afirma.
A advogada destaca que a PL quer, por exemplo, reduzir um dia de pena para cada sete dias que um preso ficou em situação degradante em um presídio. Para ela, isso é como se o próprio governo reconhecesse que a situação dentro do sistema carcerário não melhora a vida das pessoas.
Fonte: Ponte Jornalismo
Imagem: reprodução