O cinema brasileiro tem espectadores ou testemunhas?” Esta irreverente pergunta foi formulada pelo jornalista e crítico de cinema Celso Sabadin, ao deparar-se com mais uma rodada semanal de bilheterias de filmes nacionais, divulgada pelo Boletim Filme B.
A questão faz sentido se levarmos em conta que filmes formatados para dialogar com grandes públicos e lançados em circuitos significativos (de 150 a 500 salas) tiveram taxa média de ocupação das mais alarmantes.
Ao longo de 2018, fracassaram filmes protagonizados pelo “midas” (e ex-gordo) Leandro Hassum (caso de “Não se Aceitam Devoluções” e “O Candidato Honesto 2”). Fracassaram, até, produções de índole fascista (presença rara em nossas telas, registre-se) como “O Doutrinador”, de Gustavo Bonafé. Se os tempos rezam pela cartilha de extrema-direita de Jair Bolsonaro, o presidente eleito, porque este filme fracassou?
E por que fracassaram comédias como “Tudo Acaba em Festa”? E filmes jovens e bem feitos como “Legalize Já – A Amizade Nunca Morre”, que o mesmo Bonafé realizou em parceria com o descolado Johnny Araújo, para contar a história do nascimento da banda Planet Hemp, de Marcelo D2 e Skank, defensores juramentados da legalização da maconha?
Como explicar o fracasso de “Chacrinha, o Velho Guerreiro”, sólida narrativa do experiente Andrucha Waddington, que mobilizou elenco estelar? E o perceptível fracasso de “O Grande Circo Místico”, de Cacá Diegues, filme indicado para buscar vaga entre os cinco finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro?
Algumas causas se impõem. A principal delas é a multiplicação de plataformas domésticas para a fruição cinematográfica. Semanas depois do lançamento comercial, os filmes estarão disponíveis em redes de TV, em canais a cabo, no streaming (Netflix e assemelhados), VoD (video on demand) etc, etc. Outra causa significativa é o preço do ingresso, do estacionamento, da pipoca e do refrigerante. Alto demais, até para a classe média (que aliás nunca foi muito fã de cinema brasileiro, pois historicamente consumiu apenas a produção made in USA). As camadas populares, estas sim, aliadas históricas das chanchadas, dos filmes de Mazzaropi, das pornochanchadas, das comédias dos Trapalhões, de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de “Dois Filhos de Francisco”, das ‘globochanchadas’ e de “Tropa de Elite 1 e 2”, apreciam nossos filmes, mas não tem grana para bancar o alto preço dos ingressos.
Há, porém, razão, a ser especialmente destacada: a baixíssima autoestima do brasileiro, que nos últimos anos chegou a índices brutais. Desde os 7 a 1 (Alemanha x Brasil) na Copa de 2014, o orgulho nacional só fez mergulhar no mais fundo abismo. Fato agravado por descrença total em nossos políticos e gestores públicos. Ser brasileiro virou sinônimo de tudo que é ruim.
Vale voltar no tempo para relembrar os anos de 2002 e 2003. No primeiro, Luiz Inácio Lula da Silva fez campanha eleitoral pregando a inclusão dos mais pobres. Em pleno período de campanha, “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, foi lançado nos cinemas (dia 2 de setembro). Para espanto geral, um filme protagonizado majoritariamente por atores negros e desconhecidos vendeu quase 3 milhões de ingressos. Quando foi indicado a quatro Oscars pela Academia de Hollywood, vendeu outros quase 200 mil tíquetes, fechando com número espantoso: 3,2 milhões. O país queria se ver, estava banhado em esperança de mudanças, na crença de que poderíamos superar nossa secular injustiça social.
O presidente eleito, Lula, tomou posse no Réveillon de 2003. A autoestima nacional conheceu, então, momento notável. Justo em 2003, ocupamos 21% de nosso mercado interno. Dado mais expressivo desde os anos 1970, quando as bilheterias das pornochanchadas ajudavam os 30 filmes de empenho artístico-cultural-histórico-literário a ocupar um terço do mercado nacional (os outros 67% ficavam com o cinema ‘made in USA’, que deixava uma nesga para o cinema europeu e asiático). Três filmes deram robustez às bilheterias verde-amarelas daquele primeiro ano da gestão lulista: “Carandiru”, de Hector Babenco (4,6 milhões de ingressos), “Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (3,2 milhões) e “Os Normais”, de José Alvarenga Jr. (3 milhões). Nos anos seguintes, filmes como “2 Filhos de Francisco”, de Breno Silveira (5,6 milhões), “Cazuza, o Tempo Não Para”, de Sandra Werneck e Walter Carvalho (3 milhões), e “Se Eu Fosse Você”, de Daniel Filho (3,7 milhões) seguiriam mobilizando grandes plateias.
De 2003 até hoje, porém, não se registrou taxa de ocupação similar aos 21%. Este dado, tão significativo, não se repetiu. Nem no ano em que “Tropa de Elite 2″ — a maior bilheteria do cinema brasileiro (11,2 milhões), desde que institutos oficiais passaram a medi-la — foi capaz de superar a casa dos 20%. No ano da segunda “Tropa”, o índice estacionou nos 18%.
Este ano, para maquiar positivamente as estatísticas, se dirá que “Nada a Perder”, primeira parte da biografia do bispo Edir Macedo, vendeu mais ingressos que “Tropa de Elite 2″. Quem quiser acreditar nisto, que acredite. Mas saiba que muitos veículos de imprensa (grandes e pequenos) testemunharam salas vazias, embora os borderôs registrassem boa quantidade de ingressos vendidos. Só tolos e gente de boa fé (de muita fé) aceitarão o recorde de bilheteria do filme, que não tem o poder de sedução de “Os 10 Mandamentos” e faz descarado proselitismo religioso.
Vejamos, pois, alguns exemplos das catastróficas bilheterias de 2018. Comecemos por “O Doutrinador”. Baseado em HQ, o filme traz um super-herói que o colunista Mário Sérgio Conti batizou, na Folha de S. Paulo, como “Bolsomoro” (mix de Bolsonaro com o juiz Moro). O longa-metragem teve lançamento poderoso (em quase 500 salas). Seu resultado foi pífio, suas médias de ocupação de sala, baixíssimas. Em quatro semanas, vendeu 253 mil ingressos e apresentava a humilhante média de ocupação de 57 espectadores. Um filme de super-herói ‘made in USA’ costuma fazer média de 1.200 a 2.000 espectadores/sala. A comparação é despropositada? Não, já que a gramática e a ideologia do filme doutrinador mimetizam as superproduções de vingadores à moda de Hollywood.
Outro fracasso digno de registro: “O Grande Circo Místico”, o representante brasileiro em busca de vaga ao Oscar. O filme foi lançado com menos de cem cópias. Em seu primeiro final de semana, atingiu média que passou dos 200 espectadores/sala. Em texto de tamanho significativo na coluna de Ancelmo Góis, em O Globo (25-11-18), Diegues analisou a bilheteria de “Chacrinha”, realmente decepcionante, e forneceu bons argumentos para justificar as dificuldades ora enfrentadas pelos filmes brasileiros. E ponderou que, quando chegar à TV, o filme do “Velho Guerreiro” atingirá excelentes índices de Ibope. Quem há de negar tal análise? Ninguém que conheça a história do cinema brasileiro.
Mas a segunda parte do texto de Diegues é enganadora. Ele diz que “O Grande Circo Místico” é um sucesso, que seu circuito exibidor crescera exponencialmente (para 145 salas) etc, etc.
O que o cineasta e produtor do filme, baseado no poema de Jorge de Lima, escondeu é que a média de público, dado essencial para se mensurar um sucesso de bilheteria, era baixa e — com o aumento de cópias — desabaria de vez. Dos mais de 200 espectadores/sala da primeira semana, cairia para míseros 54 na segunda. Mesmo com os feriados da Proclamação da República e do Dia da Consciência Negra (que totalizaram seis dias), o filme somou, em 14 dias, apenas 35.309 espectadores. Há que se registrar: trata-se de produção caríssima, que mobilizou recursos brasileiros, franceses e portugueses.
Outros dados inacreditáveis deste ano, em que o Brasil levou ao paroxismo seu recorrente Complexo de Vira-Lata: “Chacrinha” (26 mil ingressos), “Tudo Acaba em Festa”(22 mil), “Legalize Já”(37 mil), “Coração de Cowboy” (32 mil). Sem falar em “Sequestro Relâmpago”, primeiro filme de Tata Amaral a buscar diálogo com o grande público, lançado em 37 salas, vendeu apenas 4.003 ingressos (média de 108 espectadores). Outro caso impressionante: “O Segredo de David”, protagonizado por um serial killer verde-amarelo, vendeu 3.427 ingressos, mesmo sendo ofertado em 78 salas. Média humilhante: 44.
Até no campo do documentário — produção barata, lançada com poucas cópias, mas capaz de gerar sucessos como “Vinícius” (300 mil ingressos), “Raul Seixas” (160 mil), “Uma Noite em 67” (80 mil) — para ficar em exemplos razoavelmente recentes — a situação está desesperadora: o delicioso filme que Lulu Corrêa dedicou a Hugo Carvana, “Como se Faz um Malandro”, vendeu míseros 136 ingressos ao longo de duas semanas.
Celson Sabadin tem razão. Muitos de nossos filmes não têm espectadores, têm testemunhas. Caso da ficção “A Voz do Silêncio”, com Marieta Severo, que rendeu a André Ristum o Kikito de melhor diretor: em 19 salas, o filme vendeu 950 ingressos.
Fonte: Maria do Rosário Caetano – Revista de Cinema
Imagem: divulgação