Uma Noite de Crime é uma das franquias de terror mais interessantes dos últimos anos. Fruto da parceria entre o roteirista James DeMonaco e o produtor Jason Blum, os filmes assombram ao apresentar o conceito de um evento anual onde todo tipo de horror torna-se legalizado pelo período de 12 horas – porém, é difícil dizer que qualquer um dos capítulos da saga realmente se aprofunda nas implicações do Expurgo. Foi pensando nisso que DeMonaco levou sua criação para a TV, onde explora toda a maldade de The Purge ao longo de dez horas.
O seriado abre pouco antes do início do Expurgo anual e apresenta quatro diferentes núcleos narrativos: o ex-fuzileiro em busca de sua irmã; a garota perdida que se junta a um culto suicida; a mulher de negócios que decide contratar alguém para assassinar seu chefe abusivo; e um casal de empreendedores que passa a questionar o quão bem se conhecem após se entrosarem com a alta sociedade.
É fácil definir os personagens por suas “funções” na história e não por seus nomes – não há desenvolvimento pessoal algum para torná-los marcantes ou sequer memoráveis. Fica ainda mais complicado gostar dos personagens quando a maioria sofre com atuações medianas – com as mais convincentes ficando entre a executiva de sucesso Jane (Amanda Warren), seu repugnante chefe vivido por William Baldwin e o intenso justiceiro Joe Owens (Lee Tergesen). De resto, todo o grupo de protagonistas vai do começo ao fim com as mesmas motivações e vícios, sem qualquer crescimento significativo ou presença na tela.
ALÉM DA NOITE DE CRIME:
Mesmo assim, The Purge funciona. A forma como a história é contada ignora a individualidade dos protagonistas para colocá-los para interpretar papéis dentro de um contexto social e político. Como o próprio criador deixa claro, a franquia sempre foi pensada para explorar as intenções sociais e econômicas do Expurgo, mas isso nunca se concretizou. Todos os filmes se limitam a questionar a sociedade disfuncional onde a matança é a solução ideal, enquanto a série de TV investiga todos os componentes de uma sociedade em crise.
O argumento de DeMonaco, apresentado sem medo em um texto carregado, já não é mais alertar sobre o perigo iminente da normalização da violência, e sim apontar como o evento nada mais é do que a intensificação das agressões cotidianas. Namorados ciumentos, patrões assediadores, trabalhadores tratados como descartáveis, pessoas que sentem que o mundo lhes deve algo: tudo isso existe diariamente, mas o Expurgo, ao contrário do que pregam os idealizadores e entusiastas, encoraja abertamente que as pessoas levem seu lado ruim a um novo nível de brutalidade egoísta.
De certa forma, quando a série levanta os paralelos com tudo de ruim que já existe na nossa realidade, a trama torna-se sobre os demais 364 dias do ano – e até além, por exemplo quando um personagem europeu reflete que os “Expurgos originais” foram praticados pelo povo colonizador: “Já ouviu falar do Congo? Do tráfico de escravos no Atlântico? Os europeus inventaram o Expurgo.”
No esforço de se basear no mundo real ao invés de trabalhar um universo próprio, The Purge também ressalta a resistência ao descaso do governo. Enquanto o massacre autorizado acontece, diversos grupos tomam as ruas para protegerem uns aos outros: médicos ganham passe-livre para ajudar os feridos, mulheres se armam para resgatar outras em situações extremas, repórteres documentam todos os horrores para conscientizar o restante da população. Na série, o símbolo da solidariedade fica com Pete (Dominic Fumusa), um policial que comanda uma zona segura em um bar durante as noites do evento, garantindo proteção e companhia para aqueles que não se garantiriam do lado de fora. Assim como em guerras e catástrofes, tempos difíceis também ajudam a lembrar que grande parcela da população ainda não esqueceu sua humanidade.
Quando se trata de roteiro, The Purge é a franquia em seu ápice. Já em todo o resto, a série é precária. Não bastasse atuações medíocres e personagens estagnados, o programa deixa muito a desejar em termos de produção: as máscaras dos inimigos, equipamentos e típicas loucuras da matança têm um visual barato e pouco convincente. Nos cinemas a Blumhouse Productions, empresa de Jason Blum, faz mágica com pouco, produzindo filmes como Corra! (2017), Halloween (2018) e Fragmentado (2017) com até US$10 milhões, só para quadruplicar nas bilheterias um orçamento insignificante para Hollywood. Na televisão, meio que costuma funcionar bem com pouco dinheiro, a fórmula não deu tão certo graças a estética, que oscila entre amadora e genérica.
Mesmo assim, o seriado mostra todo o potencial que The Purge têm nas mãos – mais do que qualquer um dos filmes já fez. O posicionamento político de DeMonaco é integral para o conceito da obra e só agora ele pôde falar sem medo de um fracasso de bilheteria e sem a necessidade de comprimir sua voz em duas horas – sendo esse tempo repartido com a matança que atrai os espectadores aos cinemas. É um texto poderoso, que carrega o público tranquilamente até o final, mas que só ressalta como o programa ainda tem uma longa de jornada de melhora pela frente.
No Brasl, a primeira temporada de The Purge está disponível pelo serviço de streaming Amazon Prime Video. A série já está renovada para a segunda temporada.
Fonte: Arthur Eloi – site OMELETE
Crédito da imagem: The Purge/USA Network/Divulgação