O atacante Joan, de 24 anos, viveu boa parte da sua carreira nas categorias de base do ABC. Mesmo com bom retrospecto no sub-17 e sub-20, deixou o clube na fase de transição para o profissional. Desde então, ele vive como andarilho no mundo da bola. Nestes cinco anos seguintes, passou por clubes como Porto-PE, Hercílio Luz-SC, Atlético Potengi-RN e, por último, Assu – todos sem a perspectiva de um contrato mais longo e com salários pouco atraentes. Há cinco meses, ele está desempregado – mais precisamente desde o final do Campeonato Potiguar. Joan é um retrato do jogador potiguar sazonal: atua um período do ano por um clube pequeno, com baixo salário, e não sabe se terá emprego no restante dele.
Como o atacante, outros tantos jogadores no Rio Grande do Norte vivem essa situação na carreira. Quase 70% dos atletas que atuaram no Campeonato Potiguar deste ano recebiam até dois salários mínimos como renda (R$ 1.874), segundo levantamento do Sindicato dos Atletas de Futebol Profissional do Estado do Rio Grande do Norte (Safern). Os dados, inclusive, foram utilizados pelo ex-jogador Robson “Capitão”, ídolo do América-RN e hoje diretor financeiro da Safern, no trabalho de conclusão do curso de Educação Física. Alguns desses casos foram retratados na série Desilusão Futebol Clube, do Globo Esporte RN e do GloboEsporte.com.
Desilusão Futebol Clube
– A gente vê muito na mídia esses holofotes em cima dos grandes campeonatos, dos atletas renomados, os grandes destaques, e aí é onde traz a ilusão na cabeça de muitas pessoas, que vão imaginar que todo atleta de futebol é bem sucedido, tem o seu lado financeiro privilegiado. Que no momento que encerrar a carreira, ele pode ter qualquer outro afazer que ele está seguro. E a realidade não é essa. A realidade é que aqueles que, por ventura, mantenham de 10 a 15 ou até mais anos de profissão conseguem esse aporte financeiro e, na sequência, tem que buscar alguma solução. Seja em outro trabalho, seja se qualificando para estar preparado pra situações adversas – destaca Robson.
Em meio a essa crise, Joan criou um meio alternativo de manter uma renda: ele tem uma loja online em que vende produtos como celulares, relógios, perfumes, entre outros itens. Enquanto fica sem jogar, ele se dedica ao empreendimento particular.
– Há mais de um ano venho vendendo e agora o negócio está mais sério, mais firme, mais efetivo. Tenho um projeto de também abrir uma loja tanto aqui em Natal, no interior, ou em outros locais. É uma renda a mais para quando eu não esteja jogando ter algo que possa me sustentar – disse o jogador.
Joan tem o privilégio de fazer parte de um grupo de 38,75% dos jogadores que concluíram o ensino médio, realidade diferente de 54,84% dos atletas que disputaram o Estadual deste ano – desses, 24,43% sequer concluíram o primeiro grau.
– A gente constatou que, em algumas variáveis, principalmente a sócio-econômica e a questão de escolaridade, até pelo tempo desprendido para prática de atividades esportivas, ele (o futebol) não oferece essa condição de você estudar e trabalhar – avalia Robson.
Um dado levantado por Robson é de que 20% dos atletas sequer tiveram a Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada pelos clubes no Estadual.
– É um direito do trabalhador. De qualquer trabalhador, seja do futebol ou de qualquer outra profissão. Então, é um direito porque ali você está amparado em caso de alguma eventualidade, de alguma contusão e assim por diante. Então essa foi uma das surpresas – disse o ex-jogador.
Fenapaf quer melhora do calendário
O Brasil tem cerca de 660 clubes de futebol profissional em atividade, segundo a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf), para um total de 18 mil atletas. Com o fim da Série D e a proximidade do encerramento da Série C, o mês de outubro começará, no entanto, com apenas 40 desses clubes em plena atividade no Brasil. Isto é: algo em torno de 6% do total das equipes têm calendário do início ao fim do ano.
Para o presidente da Fenapaf, Felipe Augusto Leite, é fundamental que o calendário seja alterado para que mais jogadores possam estar empregados a esta altura da temporada.
– Esse assunto já foi levado à CBF por nós da Fenapaf. Foi aberto o diálogo sobre a extensão da Série C até pelo menos o final de novembro para que os atletas ganhem mais 45 dias de emprego. Foi levado o assunto da Série D, que é um assunto muito grave, muito complexo, porque a Série D, dos 68 clubes, 36 já ficam alijados da competição no final de junho, isto é, no meio do ano – destaca.
Para o dirigente, a realidade atual é contrastante com o que é visto nos grandes clubes e com os grandes jogadores brasileiros. Ele explica que a realidade de atletas como Neymar e Lucas, ambos do PSG, que ganham salários astronômicos, representa 1% do total dos jogadores brasileiros.
– A realidade do Brasil é de que a grande maioria é desempregada a partir do mês de abril. Ainda assim, neste período que eles trabalham, eles só ganham um salário mínimo. E, evidentemente, você passar, de 12 meses, nove desempregado, isso faz com que você se desiluda com essa profissão, com essa carreira. Você precisa ter sua vida independente, ter família, criação de filhos, educação e todo um aparato que faz com que você tenha uma vida em sociedade. É por isso que nós encontramos tanto desemprego. Os atletas não estão educados pra exercer uma profissão digna e o sistema não está dando emprego para amparar toda a categoria. E é daí que eu tenho certeza que há toda essa grande desilusão e essa fuga do sonho de ser um atleta profissional de futebol – conta.
Outro cenário
A opinião do presidente da Fenapaf é compartilhada pelo atacante Joan, que é refém dessa falta de calendário extenso atualmente. O jogador, inclusive, já passou mais de um ano sem atuar até acertar com o Potengi para a segunda divisão do estadual de 2016.
– Eu acho mais pela falta de organização e planejamento da nossa confederação. Ela que não tem o planejamento a longo prazo, extenso, para a quantidade de clubes que existe no país – acredita o jogador.
Joan já passou pelo futebol espanhol e viu outro cenário pelo país ibérico. Lá, a quarta divisão nacional é formada por 364 clubes divididos em 18 grupos, que mantém as equipes atuando durante todo o calendário, assim como a terceira divisão, que conta com 80 clubes divididos em quatro grupos.
– Você consegue ter um calendário de setembro a junho sem interrupção e o jogador fica empregado o ano todo. Aqui no Brasil, tem jogador que joga de metade de janeiro talvez a abril. E, quem não se classifica para as finais do estadual, em abril já está fora do mercado e passa o restante do ano sem ter uma renda fixa para família e tem que procurar outros afazeres – lamenta.
Período inativo atrapalha
Joan é filho do ex-jogador Barata, com passagens marcantes por ABC, Fluminense e Tenerife (Espanha). Ele acredita, no entanto, que o parentesco não tem tanta influência, já que hoje, por exemplo, está desempregado. Com passagens pelas categorias de base do Atlético-PR e Rayo Vallecano (Espanha), o jogador conta que já chegou a desistir do futebol.
– A gente sabe que quanto mais tempo você perde, mais difícil é encontrar um clube. Eu, que vinha de uma batida boa, de uma base boa, de ir para grandes clubes do Brasil e fora também. De repente eu, por questões até emocionais, não sei explicar, eu desmotivei, parei. E quando tentei voltar, eu tive a lesão também, passei quase um ano inteiro sem atuar. É difícil para você voltar, mesmo que você já tenha feito alguma coisa, mesmo que você tenha influência, mas não influencia tanto como a que eu tenho – admite o jogador.
Esse período sem atuar não é exclusividade de Joan. O ex-zagueiro Robson acredita que, com a redução dos estaduais e o foco nos campeonatos nacionais, mais jogadores passam a viver essa realidade. Sem estudo suficiente, muitos acabam convivendo com o desemprego.
– Muitas pessoas que vivem no meio do futebol sabem que existe isso, mas a gente precisa formalizar isso, mostrar para a sociedade através de divulgação, de trabalhos acadêmicos, através da mídia, para que as pessoas tenham a consciência e os gestores responsáveis, das entidades responsáveis, possam formar ideias, possam criar ideais, possam criar soluções. Que possam ser criados projetos visando esse lado social – destaca.
Enquanto mantém a atividade paralela com a venda de produtos em uma loja virtual, Joan ainda sonha com o retorno ao futebol. Aos 24 anos, ele acredita que ainda há tempo para construir uma carreira vitoriosa.
– O futebol é uma bola. E, um segundo que você está ali, a bola bate em você e você faz o gol do título, você vai para um time grande e muda sua vida. Eu estou com 24 anos, muita gente acha que é tarde, mas claro que não. Antigamente você começava a jogar com 23, 24. Dificilmente você via um jogador com 16, 17 anos num profissional. Então, ainda dá tempo. Eu tenho mais 10 anos (de carreira). Se eu me cuidar, 15, até os 40, 42 anos. O biotipo é bom. Então, se eu quiser mesmo, eu chego – concluiu.
Números da pesquisa de Robson
147 jogadores entrevistados dos oito clubes do Campeonato Estadual.
54% não concluiu o ensino médio; 24% não concluiu o primeiro grau.
83% têm até 30 anos.
85% têm pelo menos um dependente no futebol.
39% têm filhos.
20% não tiveram carteira assinada.
70% recebem até dois salários mínimos; 21% recebem o mínimo.